Crônica

O carrinho1

Peri, com seu amigo Pécias, havia terminado de fazer uma compra no supermercado da cidade onde aproveitavam o feriado prolongado de carnaval. No estacionamento, colocou os produtos no porta-malas de seu carro. E o carrinho, que lhe fora útil quando estava nos corredores do supermercado e depois para levar o que comprara até seu veículo, deixou ali mesmo, na vaga ao lado de onde tinha estacionado. Porém, Pécias questionou:

— Peri! Não devíamos levar o carrinho de volta aonde o pegamos?

— Não! Claro que não. Deixa aí mesmo. Um trouxa qualquer desce do carro e tira para estacionar. Não é problema nosso.

— Ah, eu acho que isso não está certo. A gente deveria... - e foi prontamente interrompido pelo amigo.

— "Se liga", Pécias! Deixa isso pra lá! Vamos voltar logo pro sítio. O pessoal já deve ter acabado com a cerveja.

Seguiram para a estradinha que levava ao local. O caminho era estreito, repleto de curvas com muitos aclives e declives em pista de mão dupla. Tendo, por isso, inúmeros trechos onde não se enxergava quem vinha no sentido contrário, os chamados "pontos cegos". Entretanto, como era asfaltado, sempre aparecia algum veículo que, conduzido por jovens sem prudência, sem perícia e, principalmente, alcoolizados, excediam a velocidade máxima determinada nas placas.

A distância do supermercado ao sítio era de nove quilômetros. Peri dirigia respeitando a sinalização. Todavia, quando faltavam dois quilômetros para chegar, um carro em alta velocidade surgiu na contramão logo após uma curva. No ímpeto de evitar a colisão, Peri virou bruscamente o volante para a esquerda. Foi o suficiente para o outro veículo passar, mas não para o seu manter-se na estrada. Peri tentou virar de volta à direita, porém seu carro já estava derrapando na terra com pedriscos e foi de encontro a uma árvore.

O impacto ocorreu do lado do passageiro, onde estava Pécias. O cinto de segurança e o airbag atuaram em sua segurança, mas não impediram que o galho de um pinheiro quebrasse o vidro lateral e batesse em sua cabeça. Como Peri feriu o braço só levemente, pois também usava cinto de segurança e foi protegido pelo airbag, tratou de acudir o amigo, que ficou desacordado.

Já anoitecia, e o sinal do telefone celular ali era precário, não funcionando na maior parte do tempo. O carro parecia preso na árvore e Peri decidiu que não convinha tentar tirá-lo, pois poderia agravar os ferimentos de Pécias. Daí tratou de acionar o pisca-alerta e voltou à estrada para pedir ajuda.
E logo surgiu um carro. Seus ocupantes notaram o acidente e pararam.

— Uma ambulância com socorristas! Precisamos para retirar meu amigo dali e levá-lo ao hospital! Com urgência, por favor! Peçam pra nós! - disse-lhes Peri.

— Deixa com a gente! - respondeu o condutor e imediatamente seguiu para atender ao pedido.
Alguns quilômetros adiante o sinal do telefone celular permitiu-lhes que ligassem ao "192". E uma equipe de plantão no hospital da cidade saiu rapidamente com sua viatura para a ajuda. Em poucos minutos Pécias já estava sendo atendido.

Conseguiram retirá-lo do veículo, dar-lhe os primeiros socorros e imobilizá-lo numa maca. Em seguida partiram ao hospital. Com o uso da sirene e das luzes intermitentes abriram caminho e chegaram depressa.

Porém não havia médico. Fato esse corriqueiro nos hospitais públicos do Brasil desses dias. Era para ter um clínico geral de plantão, mas não havia chegado. No entanto, ele fora contatado por um enfermeiro, via telefone, e se encontrava a caminho.

Pécias estava piorando e o doutor não chegava. Os socorristas e enfermeiros não podiam fazer nada além do que tinham feito.

Seis minutos depois, ele apareceu. Peri levantou-se bruscamente e se pôs à frente dele, vociferando.

— O senhor é um irresponsável! Vai ver, se ele morrer! Salva ele! Salva ele! Vai!

O médico agiu rapidamente. Procedeu à realização dos exames necessários, ministrou os medicamentos devidos e, então, chamou Peri para informar.

— O senhor é o que dele?

— Sou amigo de infância, praticamente um irmão. Estamos passando o feriado aqui num sítio.

— Tivemos sorte. - disse o médico -Cheguei a tempo de identificar o problema e medicá-lo antes que o pior acontecesse.

— Agradeço, doutor. Mas por que o senhor não estava aqui quando chegamos? Por que tivemos que passar por essa agonia?

— Eu ia chegar na hora. Atrasei-me por causa de uma dificuldade no estacionamento do supermercado, onde costumo comprar os alimentos para meu lanche aqui no hospital, exatamente para ficar por perto.

— Como assim?

— Quando cheguei ao estacionamento havia duas vagas, no entanto o condutor à minha frente resolveu pôr o carro dele justamente numa que tinha um carrinho largado no meio. Parou no corredor e desceu para retirá-lo. E enquanto ele estacionava, a outra vaga era ocupada por um motorista que entrou pela saída do local. Tentei encontrar uma nova que pudesse ter surgido, mas não achei. Então, saí dali e deixei meu carro na rua, a uns duzentos metros do supermercado. Senão eu me atrasaria ainda mais. Você me entende?

— Sim... -Peri respondeu, com um nó na garganta.

O médico continuou:

— Nesse tempo, o supermercado foi ficando mais cheio e as filas para os caixas, maiores e mais demoradas. Eu não teria me atrasado para esse plantão se alguém não tivesse deixado aquele carrinho numa vaga de estacionamento. Foi isso.

E concluiu:

— É incrível como pequenos atos, aparentemente sem importância, podem ter grandes consequências. Não é mesmo?

Peri baixou a cabeça, voltou a sentar-se e ficou em silêncio.

1. JERÔNIMO, J.R. Peri & Pécias no Trânsito - Crônicas, Guarulhos, Ed. do Autor, 1ª edição, 2018, p 74.
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