Crônica

O cão e o trapo1

A caminho do trabalho, sete e quarenta da manhã, de uma segunda-feira. Fazia um pouco de frio, era começo do inverno de 2010. Peri deparou-se com uma cena tão... não sei exatamente qual o adjetivo. Mas à medida que discorrer a historinha talvez o tenhamos encontrado.

Na Avenida Otávio Braga de Mesquita, desceu do ônibus dois pontos antes de chegar à Praça Oito de Dezembro. Bairro do Taboão, cidade de Guarulhos. Na calçada que o ônibus o deixou, voltou uns trinta metros. Passou pela banca de jornais e entrou na primeira esquerda. Rua Pedro de Toledo.

Continuou pelo passeio. Entre o alto e amarelo muro de uma indústria de caixas de papelão, à esquerda, e as pequenas árvores à direita, de tal modo inclinadas para o lado do muro, que pareciam querer encontrar-se com ele. Foi então que avistou, na mesma calçada, vindo em sentido contrário, um pequeno cão e seu dono.

Não conseguiu não prestar atenção. Solto, sem coleira, amarelo de nascença e marrom de vivência, devido à sujidade, o cachorrinho trazia em sua boca um trapo. Era um pano de prato, bem encardido. Seu dono era um homem de aparência simples, perto de seus cinquenta anos. Meio encolhido de frio, com pouco agasalho, vinha depois do cão.

Não existia nesse momento outra coisa no mundo para aquele animal, apenas o trapo, encardido. Ele o jogava para cima, corria, pegava, atirava para o lado. Ia, agarrava outra vez. Chacoalhava de uma parte a outra. Lançava adiante. Apressava-se e o apanhava novamente. Fazia isto sem parar e sempre em frente. De modo que o homem que o seguia não precisava reduzir a marcha. Pois o cão, brincando, ia adiantando-se no caminho. Tal era sua concentração e alegria com o trapo, encardido, que não apenas Peri ria daquilo, como também o homem que o acompanhava.

Dentro em pouco, quando Peri olhou para trás, não mais os viu. Os dois, cão e dono, sumiram na esquina.

Peri seguiu seu caminho pensando sobre aquela cena e aqueles instantes que acabara de presenciar. Considerou a ideia de que na vida, às vezes, deve-se agir como aquele cãozinho. Não no que concerne a liderar alguém numa caminhada, brincando com um trapo, encardido, mas ao fato de que há circunstâncias em que é preciso absorver-se com alguma tarefa. Pelo simples e único motivo de que, nesse momento, seja importante desligar-se de certos pensamentos e lembranças. E assim, reduzir-se quaisquer influências negativas. Como disse o pensador estadunidense Ralf Waldo Emerson (1803-1882): “Preencher a hora, eis a felicidade...”2.

Outras vezes, porém, absorver-se tanto em alguma tarefa pode ser pernicioso. É quando se deixa de ver o conjunto da vida que rodeia cada um. É quando se desleixa oportunidades e possibilidades de melhoria. Em que o tempo passa e a pessoa não evolui.

O preenchimento pleno do tempo numa atividade produtiva ou positiva, pode ser muito útil. Por exemplo, nos casos em que se precisa afastar alguém das drogas ou de comportamentos e companhias destrutivos. A mente, nesses casos, não dá espaço para pensamentos e atitudes contrários, quer dizer, improdutivos ou negativos. Por outro lado, deve-se cuidar para não se limitar a visão do geral. De forma que se mantenha ativa a percepção para se aproveitar novas chances de realizações.

Quanto à cena do início, talvez a palavra: “inspiradora”, fosse o adjetivo que procurava. Ê cachorrinho que ensina, hein! Além do que, ele não foi, em momento algum, para a rua. Só trafegou pela calçada, tal seu dono. Educados, não?

1. JERÔNIMO, J.R. Peri & Pécias no Trânsito - Crônicas, Guarulhos, Ed. do Autor, 1ª edição, 2018, p 71.

2. GOODREADS. . Acesso em: 22 set. 2013. “To fill the hour - that is happiness, to fill the hour and leave no crevice for a repentance or an approval.” “A felicidade consiste em preencher as horas e não deixar um resquício para que penetre o arrependimento ou a aprovação.”
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