Peri havia notado, algumas vezes, um cheiro estranho de queimado que vinha do capô de seu veículo. Um automóvel modelo hatch2, azul fluticolor, ano 1995, que tinha então doze anos de uso, já que essa história se passou em 2007.
Tal idade do carro, em conjunto com a longa quilometragem, confirmava ter sido bastante utilizado. Tinha passado já por todo tipo de manutenção e apresentava muitas peças com desgaste, das quais, uma dessas provavelmente era a razão do óleo que vazava do motor.
O mecânico, a quem Peri confiava os reparos do carro, disse-lhe que deveria ser problema de junta. Mas não daquele tipo de junta que muita gente faz piada, “junta tudo e joga fora”, nesse caso era da junta do cabeçote.
Decorrente disso, Peri associou o cheiro de queimado ao vazamento do óleo. Tinha tido essa impressão porque o motor, quando funcionava durante muito tempo seguido, alcançava temperaturas altas o suficiente para queimar o lubrificante que se empoçava nas arestas do alto do motor. E isso acontecia especialmente quando havia trânsito excessivamente lento com muitas paradas e retomadas e dia de forte calor, apesar do sistema de arrefecimento.
Algumas semanas depois, Peri decidiu que corrigiria esse problema. Foi à oficina de costume, e o mecânico, que já se tornara praticamente um amigo, lhe orientou para a solução.
— Peri, faz um favor, três ou quatro dias, antes de trazer seu carro aqui, leve-o para um lava rápido, a fim de deixar o motor bem limpo.
— Pra você não se sujar no conserto?
— Não, meu amigo. É que esse procedimento permite-nos identificar os pontos exatos dos vazamentos. E assim, interferir de forma mais adequada.
Seguindo à risca essa orientação, no dia apropriado, Peri levou o carro para lavar o motor. Fazia mais de ano que essa parte do veículo não era lavada. O rapaz do lava rápido teve mais trabalho que de costume para remover tanta sujeira impregnada. Usou uma variedade de químicas, num festival de cheiros. Uns bons, outros, desagradáveis e ácidos. O lavador protegeu algumas partes com sacos plásticos para não serem atingidas pelos jatos d’água e nem pelos produtos utilizados.
Era fim de tarde e esse automóvel foi o último a ser lavado naquele dia. O resultado, para Peri, foi satisfatório. Ficou tudo limpo sob o capô. Até mesmo onde estava protegido pelos sacos plásticos. Pois o lavador removeu a sujidade borrifando produtos mais amenos, escovando e passando pano seco em seguida.
Mantendo o roteiro traçado, Peri foi para casa e estacionou o carro. Sua expectativa era levá-lo ao mecânico em três ou quatro dias. Sua garagem ficava na frente da residência. Tinha seis metros de largura por sete de comprimento. A cobertura com telhas romanas de barro começava com a altura de dois metros e meio, junto à grade, e ia até mais de quatro metros, quando chegava à parede da casa. Era bem alta e espaçosa para um automóvel de passeio.
Da janela da sala se via toda a garagem e também parte da rua, pois a grade dos portões tinha as barras bem espaçadas. No fundo dessa garagem, à direita de quem olhava da rua, existiam duas portas. Uma, lateral, para acessar a sala. Outra, frontal, para se chegar a um corredor externo, que tinha uma pia e ia até o fundo do terreno, onde havia uma lavanderia e banheiro.
Peri ainda estava trabalhando no escritório que ficava no fundo da casa. Passava das vinte e duas horas quando, de repente, ouve sua filha, de nove anos de idade, gritar algo para a mãe. De onde estava, ele não pôde entender o que era, mas ficou curioso; e a resposta foi imediata. Sua esposa, prontamente, e em tom de preocupação e angústia, gritou:
— Peri, fogo! Fogo! É na garagem! O carro está pegando fogo!
Nessa hora, sem entender como aquilo podia estar acontecendo, Peri manteve a calma, acercando-se da situação e tomando as providências para o momento. Como o veículo estava entre o interior da casa e o portão para a rua, a primeira ação deveria ser a de tentar apagar ou reduzir as labaredas. Assim, sua esposa e filha poderiam sair em segurança. Atinou também para a necessidade de impedir uma possível explosão do tanque de combustível, para evitar que a casa fosse igualmente atingida.
Rapidamente, pediu à filhinha que telefonasse ao Corpo de Bombeiros, pelo número 193, e lhes falasse o que estava acontecendo e o endereço da casa. Pegou as chaves e, mais do que depressa, abriu a porta da cozinha e foi ao corredor externo. Acendeu as luzes e gritou ao vizinho e amigo:
— Pécias! Fogo, fogo! Meu carro tá pegando fogo. Me ajuda! Pécias, fogo!
Correu para abrir a porta da lavanderia. Apanhou um balde e o pôs sob a torneira, abrindo-a. Solicitou à esposa que trouxesse esse balde assim que enchesse e colocasse outro para encher também. Enquanto isso foi à porta do corredor, que dava para a garagem, e abriu-a. Para sua surpresa, a frente da casa estava cheia de gente. A maioria era de conhecidos e vizinhos.
Entre eles e Peri, o carro com o capô se incendiando.
— Por favor, abram o portão! — Peri gritou, jogando-lhes as chaves.
— Usem a mangueira! O registro está aí do lado, junto à grade!
Voltou-se ao corredor e sua esposa entregou-lhe o primeiro balde, transbordando. Com receio de chegar mais perto do carro, dali mesmo, da porta desse corredor, lançou a água tentando acertar a base do fogo. No primeiro momento, as labaredas sumiram, mas, na fração de segundo seguinte, voltaram, mostrando quem estava no controle. Porém, um dos vizinhos alcançou a torneira e, com a mangueira, jogou toda a água possível sobre o capô. E Peri fazia o mesmo com o conteúdo do outro balde. Em poucos segundos o fogo estava, aparentemente, debelado.
Então pôde-se observar que a frente do carro havia sido destruída. O capô ficou deformado e era impossível abri-lo do modo normal. O para-brisa estava quebrado onde o fogo o atingira.
Em seguida ouviu-se a sirene de uma viatura dos bombeiros que acabava de chegar. Era um caminhão piscando luzes por todos os lados. Atenderam rápido ao chamado, mas Peri e os vizinhos foram ainda mais. Vieram três soldados do fogo e, imediatamente acorreram para a garagem e procuraram se inteirar do acontecido e das consequências. Quando Peri lhes explicava, o fogo que julgavam extinto, de uma faísca sob o capô, retornou. Todavia, Pécias, seu vizinho e amigo, que estava a postos com o extintor que tirara de seu próprio carro, rapidamente descarregou-o dizimando a labareda.
Um dos bombeiros providenciava um grande alicate para abrir à força o capô. Um outro contava que, enquanto não se eliminasse a fonte de eletricidade, o fogo voltaria. Por essa razão, assim que a bateria foi alcançada, os terminais foram retirados. Isso feito, observou-se que a origem do incêndio foi um curto-circuito entre fios que estavam descascados, logo acima e atrás do motor.
Constatou-se que a sujidade existente até a algumas horas antes da lavagem, era o que mantinha os fios, quase que inteiramente, isolados. “Quase”, porque aquele cheiro de queimado era das ocasiões em que estes fios, com o desgaste parcial do encapamento, prenunciavam uma queima, que se suspeitava fosse da combustão do óleo vazado.
Quando Peri contou esses detalhes à sua filha, ela perguntou:
— Papai, então era a sujeira que nos protegia?