Crônica

Bate-bate1

Seiscentos e trinta quilômetros era a distância total da viagem, de Arujá, SP, para Belo Horizonte, MG, que faziam de automóvel, Peri e sua família. No painel de instrumentos, o hodômetro já marcava “572” e o ponteiro de combustível encontrava-se no início da reserva. Faltando quase sessenta quilômetros para chegar ao destino, Peri receou que a gasolina não fosse suficiente. Em razão disso, resolveu parar no primeiro posto que encontrasse, para abastecer.

Quatorze quilômetros depois, nada de posto. Pelo menos, não que se tinha visto. A rodovia Fernão Dias, nesse trecho, tem muitas montanhas rochosas e raros acessos para cidades. Enquanto isso o ponteiro do combustível ia cada vez mais para o meio do indicador da reserva.

Mais cinco minutos de viagem, seis quilômetros foram avançados. Peri pôde avistar a uns seiscentos metros, na margem da mesma pista que estava, algo semelhante a um posto de combustível. Reduziu a velocidade, aproximou-se e foi para o acostamento. Observou que, pela cobertura erguida, tratava-se mesmo de um posto que fornecia combustível. Além de oferecer serviços de uma borracharia. De um lado e do outro dessa edificação, poucas residências e, no entorno disso, mata.

Tal empreendimento não tinha a identificação de qualquer marca. Nem conhecida, nem desconhecida. O fabricante ou distribuidor de combustível que lhes atendia era oculto. Nenhum nome se estampava no alto da cobertura ou nas quatro bombas que dispunha. E os dois atendentes, em conformidade a isso, não usavam uniformes.

Peri, e a família, pararam três vezes na estrada, para alongar-se, ir ao banheiro e lanchar. Mesmo assim, já estavam um pouco cansados da viagem de quase oito horas. Ele notou esses detalhes do suposto estabelecimento e ponderou igualmente a raridade de postos na região. Daí, o que temer mais? A insuficiência da gasolina em seu veículo, para a sequência do passeio ou a possibilidade da má qualidade do combustível daquele local? Como o primeiro teve mais peso, decidiu abastecer ali mesmo.

Sem pensar com clareza, resolveu encher o tanque. Achou que assim ficaria sossegado por muitos quilômetros e por um bom tempo. Porém, perguntou antes, ao frentista:

— Posso pagar com cartão de crédito?

— Não.

— E de débito?

— Também não. Só com dinheiro.

Peri irritou-se com essa condição e considerou a ideia de sair dali, sem abastecer. Todavia, receou não encontrar outro posto a tempo de evitar que seu carro ficasse sem combustível no caminho.

— Então, põe só vinte reais de gasolina. — disse ao homem, entregando-lhe a chave. E já separou o dinheiro para pagar-lhe, assim que ele a devolvesse.

Terminado o atendimento, Peri com sua família voltou à rodovia. Acelerou até o limite da velocidade regulamentada e assim se manteve.

Quando restavam vinte e dois quilômetros para o destino, notou que o carro estava diferente. Havia um ruído a mais, vindo sob o capô, e o rendimento do motor não era o mesmo de antes. Como faltava pouco para chegar, Peri resolveu manter a viagem. Tendo, porém, o cuidado de ir mais devagar, para não forçar o motor.

Finalmente chegaram à casa dos tios de sua esposa. Todos se cumprimentaram com muita alegria pelo reencontro de pessoas queridas que há muito não se viam.

— Como foi a viagem? — perguntou um dos tios.

— Foi tudo muito bem até faltar uns vinte quilômetros para chegar aqui. O motor caiu de rendimento e começou a fazer um ruído de bate-bate, bem estranho. Nunca teve isso.

E o tio continuou:

— Você, por acaso, parou em algum posto para abastecer na estrada, pouco antes de chegar em Beagá(1)?

— Sim. Como adivinhou?

— É combustível "batizado"(2). Essa descrição que acabou de fazer é o que tem ocorrido com veículos abastecidos em alguns dos postos de estrada aqui por perto.

— Poxa! Eu sempre ouvi dizer que era para se evitar esse tipo de combustível. Mas não sabia exatamente que era isso que fazia no carro. E agora, dá para tirar essa gasolina?

— Você colocou muito?

— Quase dez litros.

— Olha. Levando em conta que já usou uma parte disso, se abastecer, já, com uma gasolina boa, de preferência aditivada, a situação se normalizará.

Disse isto e indicou um posto de combustível de sua confiança, próximo da casa.

— E eu que me aborreci porque naquele posto não aceitavam cartão de crédito e nem de débito, hein. Ainda bem, pois do contrário teria enchido o tanque e o problema poderia ser muito maior.

E a filhinha de Peri, que estava do lado e ouviu toda a conversa, perguntou para ele:

— Papai, esse problema parece com aquele de quando o gato entrou por baixo do carro e ficou pertinho do motor, não é? Também fazia barulho quando o carro andava, mas era "miau, miau...".

— É, minha filha. É parecido, mas nesse caso foi outro tipo de "gato"(3).

Peri seguiu o conselho e, realmente, o tio de sua esposa tinha razão. O carro imediatamente passou a funcionar como se nunca tivesse tido qualquer problema mecânico. E Peri ficou mais esperto com relação a esses postos esquisitos e combustíveis com preços abaixo do possível. Conscientizou-se de que deve planejar melhor suas viagens. Prevendo, por exemplo, os casos em que o trajeto consuma mais combustível do que o que cabe no tanque. Para, nessas vezes, abastecer próximo do meio da distância entre a origem e o destino. E em postos que inspirem confiança.

Confiança que, aliás, se leva anos para conquistar e minutos para perder. Por ser valiosa, cultive-a, para merecê-la.

1. Beagá: é como a cidade de Belo Horizonte também é conhecida, escrevendo-se por extenso os nomes de suas letras iniciais, BH.
2. Combustível batizado: é como se diz, na gíria, para o combustível que foi adulterado, que sofreu o acréscimo de solventes, água e outros químicos, a fim de se aumentar o volume do líquido em detrimento da qualidade, para se ampliar irresponsável e criminosamente o lucro na venda.
3. Gato: gíria que significa trambique, coisa errada, gatuno, larápio.

1. JERÔNIMO, J.R. Peri & Pécias no Trânsito - Crônicas, Guarulhos, Ed. do Autor, 1ª edição, 2018, p 84.
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